segunda-feira, 7 de julho de 2008

Poema para refletir

"EU SEI MAS NÃO DEVIA" (Clarice Lispector)

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar
para fora. E porque não olha para fora, logo se
acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas logo se acostuma a
acender cedo a luz. E a medida que se acostuma, esquece
o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado
porque está na hora.

A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o
jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da
viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no
ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir
pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no
telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de
volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser
visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o
de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com
que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a
saber que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho, para ganhar mais
dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se
cobra.

A gente se acostuma à poluição.

Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de
cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.Às
bactérias da água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai
afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma
revolta acolá.

Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e
sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente
senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no
fim de semana.E se no fim de semana não há muito o que
fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito
porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza,
para preservar a pele. Se acostuma para evitar
feridas, sangramentos, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida que aos poucos
se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, se perde
de si mesma.

4 comentários:

Anônimo disse...

Oi, Vanessa!
Bem-vinda ao mundo do blog!
Adorei essas sábias palavras de Clarice! Ela é o máximo! Adoro!
Vou "linkar" o seu blog no meu, assim acompanharei seus posts.
Beijinhos,
Jéssica.

Rubens disse...

Excelente poema da Clarice, não podia ter expressado melhor nossa vida cotidiana! Esse faz refletir mesmo ... não nos acostumemos!!!

beijos,

Daniela Malva disse...

Adoro a Clarice... Bom pra refletir mesmo! A gente se acostuma com cada coisa... Será que vale mesmo á pena???
A gente inclusive se acostuma a matar a saudade virtualmente sendo que pessoalmente não seria tão complicado assim, né?

Anônimo disse...

Tristes costumes esses, não?
Milhares de beijos! Adoro Clarice e adorei o blog!!!
Bjão!